terça-feira, 13 de maio de 2008

SOBRE O CONCEITO DE SUSTENTABILIDADE

O tema central do GFAL é sustentabilidade. Cabe investigar como esse tema vem sendo tratado nos meios empresariais, sobretudo nas business schools.

Até meados da década de 1990 a preocupação principal do empresariado concentrava-se em qualidade e produtividade. Na passagem para o século 21, nos últimos dez ou quinze anos, o foco deslocou-se para a sustentabilidade. O grande desafio agora é compreender as novas exigências da sustentabilidade.

Mas os departamentos de responsabilidade social das empresas continuam tentando juntar ações setoriais que não têm muita relação entre si, como se combinando 800 miligramas de operação econômica, com 150 miligramas de preocupação ambiental e 50 miligramas de ação social, pudéssemos desencadear algum tipo de reação química capaz de catalisar um processo sustentável. Infelizmente, fórmulas como essa não poderão produzir 1 grama de sustentabilidade.

Há, portanto, um problema com a concepção de sustentabilidade.

Ao contrário do que muitos acreditam, o conceito de sustentabilidade não se aplica somente ao mundo natural, aos diversos ecossistemas terrestres e ao ecossistema planetário. A palavra sustentabilidade ficou identificada com o ambientalismo porquanto foi estudando os sistemas naturais que percebemos pela primeira vez a incrível capacidade de conservação da adaptação e da organização que caracteriza os seres vivos (sejam organismos, partes de organismos ou ecossistemas). Nos últimos vinte anos, entretanto, percebemos que a sustentabilidade não é apenas uma dimensão ambiental (no sentido do meio ambiente natural) do desenvolvimento e sim o novo nome do próprio desenvolvimento sob uma perspectiva sistêmica (englobando todas as outras dimensões, inclusive a social).

Percebemos que a chamada “teia da vida” era uma estrutura capaz de regular as mudanças de modo a contribuir para a sustentabilidade não porque era um sistema biológico e sim porque era um sistema complexo adaptativo, organizado em rede. Ou seja, começamos a perceber a existência de relações intrínsecas entre os padrões de organização em rede e os processos de sustentabilidade. E percebemos ainda, no tocante às sociedades e às organizações humanas, a existência de um nexo entre as mudanças sociais que interpretamos como desenvolvimento, as redes como padrão de organização e a democracia como modo de regulação de conflitos. A democracia começou então a ser compreendida como uma espécie de “metabolismo” próprio de redes sociais distribuídas.

Assim, quando a sustentabilidade emerge como o grande tema contemporâneo, não é apenas em razão dos perigos iminentes, que ameaçam nossa sobrevivência como espécie – como o aquecimento global – causados, em parte, pela falta de preservação ou de conservação dos recursos naturais. O desafio da conquista da sustentabilidade entra na pauta das sociedades como uma espécie de síntese de outros desafios que têm a ver com os padrões de organização e de convivência social. Sociedades só se transformarão em comunidades sustentáveis na medida em que seus padrões de organização e de convivência social forem capazes de constituir ambientes favoráveis ao desenvolvimento humano e social, o que depende – não há como negar – da maneira como as pessoas interagem e de como regulam seus conflitos. De sorte que hoje já podemos afirmar que a sustentabilidade das sociedades humanas é o novo nome do desenvolvimento, uma característica do padrão dinâmico de rede e, ao mesmo tempo, um dos efeitos do processo de democratização.

Tal compreensão, todavia, ainda está muito pouco difundida.

Quando falam de sustentabilidade, freqüentemente as pessoas se esquecem de dizer de que sustentabilidade se trata. A do planeta (e aí dá vontade de fazer uma provocação: por que não a do sistema solar, a da galáxia ou a do quadrante em que nos situamos neste universo)? Se não, trata-se então da sustentabilidade da vida na Terra (ou da biosfera)? Ou será que nossa preocupação é com a sustentabilidade do ser humano como espécie? Mas não seria mais pertinente – se estamos tratando de sustentabilidade empresarial – nos preocuparmos com a sustentabilidade das sociedades humanas (e, por conseqüência, das organizações que a compõem, como as empresas)?

Ainda que os padrões (ou os mecanismos, ou os processos) de sustentabilidade possam ser semelhantes, os desafios são diferentes dependendo do âmbito a que nos referimos. E misturar as coisas, achando que organizações (como as empresas) serão sustentáveis se se dedicarem à proteção do meio ambiente (natural), não ajuda muito. Tudo indica que tal providência não é suficiente: uma empresa pode trabalhar o quanto quiser em prol da conservação ambiental, mas nem por isso terá garantida a sua sustentabilidade organizacional. E é duvidoso que suas ações possam contribuir para salvar a vida na Terra.

O planeta vivo – Gaia, na hipótese dos cientistas James Lovelock e Lynn Margulis – tem uma capacidade incrível de conservar a sua adaptação e a sua estrutura básica. “A vida ou a biosfera regula ou mantém o clima e a composição atmosférica em um nível ideal para si mesma” (esta é a hipótese Gaia). O problema, como argumenta Lovelock (1991), é que uma parte de Gaia, composta pelo “restante da criação... moverá inconscientemente a própria Terra para um novo estado, um estado no qual nós, seres humanos, poderemos não mais ser bem-vindos”.

Lovelock não está preocupado com a vida em geral, que permanece protegida por um eficiente mecanismo autoregulador, e sim com a vida humana. Essa, sim, corre sério risco de desaparecimento; não por más, mas por boas razões do ponto de vista do sistema vivo global: se os seres humanos forem sacrificados por Gaia, o serão por efeito colateral de um processo que visa, sobretudo, garantir a vida na Terra.

Não estamos obrigados a aceitar os juízos políticos que Lovelock deriva dessa espécie de determinismo biológico fatal. Em um prefácio de 2004, ao livro “Gaia: medicine for an ailing planet” ele faz um apelo a todos os ambientalistas para que:

"Ponham de lado os seus temores sem fundamento [por exemplo, em relação ao progresso científico-técnico na sintetização de alimentos ou na utilização da energia nuclear] e a sua obsessão exclusiva em relação aos direitos humanos [e essa é uma conclusão, digamos, pelo menos temerária, em um tipo de civilização como a que vivemos]... Sejamos corajosos o bastante - exorta Lovelock - para reconhecer que a verdadeira ameaça provém dos danos que causamos ao ser vivo que é a Terra, da qual fazemos parte, e que é realmente o nosso lar".

Sim, mas essa não é a única "verdadeira ameaça": estamos diante de várias outras ameaças, que não podem ser consideradas como não-tão-verdadeiras.

Lovelock endossa as palavras do seu cientista-chefe, Sir David King, o qual declarou, no início de 2004, nos Estados Unidos, "que o aquecimento global é uma ameaça maior do que o terrorismo". Talvez até seja. Mas isso não pode desviar nossa atenção das ameaças à democracia e ao desenvolvimento humano e social sustentável, que são tão verdadeiras e tão presentes quanto a ameaça do aquecimento do planeta.

Não é uma questão de comparar riscos. É claro que o desaparecimento da espécie humana anulará todas as preocupações humanas. Mas, de certo modo, algum dia a nossa espécie desaparecerá mesmo: pelo menos neste planeta, com a extinção do sol (que deixará de ser uma estrela amarela daqui a aproximadamente 5 bilhões de anos); ou nesta galáxia, que está marcada para morrer (como já se sabe, a nossa Via Láctea está em rota de colisão com a galáxia de Andrômeda, a 125 quilômetros por segundo e o desastre ocorrerá nos próximos 10 bilhões de anos); ou neste universo, com o "Big Crunch".

Ocorre que, por meio do que chamamos de social, estamos construindo um mundo humano, que tem como base o mundo natural, mas que não é conseqüência do mundo natural. A tentativa humana de humanizar o mundo (ou, para usar uma expressão poética, de humanizar a "alma do mundo" por meio do social) é uma espécie de segunda criação... Para quem pensa assim, a vida é um valor principal, mas não o único: certos padrões de convivência social, além da vida (biológica) – como a cooperação ampliada socialmente ou a vida em comunidade, as redes voluntárias de participação cidadã e a democracia na base da sociedade e cotidiano do cidadão – também constituem um valor inegociável, quer dizer, um valor que não pode ser trocado pelo primeiro.

Vamos caricaturar um pouco uma hipotética situação de escolha, para mostrar o sentido do argumento. Se alguém nos dissesse que, para continuar existindo como espécie, nós, os seres humanos, nunca mais poderíamos materializar, em nossa convivência social, a cooperação, o voluntariado, as redes e a democracia, a troca valeria a pena? Quem de nós poderia aceitar tal trade off, condenando nossa espécie a viver, por exemplo, (não apenas mil anos, mas, digamos, um milhão de anos ou mais) naquele III Reich com que sonhavam Hitler e seus colaboradores sociopatas e psicopatas?

Em outras palavras, não podemos esquecer tudo isso para nos dedicarmos agora somente a tentar retardar o desaparecimento biológico da espécie. Não vale ser salvo da destruição para viver em um mundo desumanizante.

Isso não significa que devamos agora descurar das ameaças ambientais. Mas se nossa preocupação é com a sustentabilidade das organizações humanas que fazem parte da sociedade – como as empresas – os fatores propriamente humanos e sociais devem ter um peso tão decisivo quanto (ou até mais decisivo que) os fatores naturais (ambientais), não?

Aquilo que devemos preservar é, justamente, o que pode nos preservar como sociedade tipicamente humana. Cooperação, voluntariado, redes e democracia são os elementos da nova criação humana – e humanizante – do mundo, que lograram se configurar como padrões de convivência social, que vale realmente a pena preservar. E são esses os elementos que podem garantir a sustentabilidade das sociedades humanas e das organizações que a compõem.

Conquanto a palavra sustentabilidade venha sendo muito usada nos últimos anos, nem por isso pode-se dizer que o seu sentido e os seus fundamentos já estejam bem compreendidos. Muitas vezes o conceito é empregado como sinônimo de durabilidade, o que dificulta a compreensão do seu significado. Uma barra de aço inoxidável dá a impressão de ser uma coisa que dura para sempre – ou dura muito; no entanto, não constitui o melhor exemplo de sustentabilidade porquanto não evoca os processos dinâmicos por meio dos quais alguma coisa se torna sustentável. Ser sustentável evoca imagens de movimento, como “dançar conforme a música” ou “andar com as próprias pernas”, que freqüentemente são mais esclarecedoras do que as explicações muito elaboradas. E não se imagina uma barra de aço fazendo nada isso.

Um outro exemplo, bem melhor, de sustentabilidade, é fornecido pelos seres vivos, quer dizer, por organismos, partes de organismos e ecossistemas (incluindo o ecossistema planetário, que foi chamado de Gaia – se aceitarmos a hipótese Lovelock-Margulis). Se alguma coisa continua viva, é sinal de que está reunindo condições de sustentabilidade. É sinal de que está conseguindo mudar de acordo com a mudança das circunstâncias, o que – embora possa ocorrer – não é tão visível numa barra de aço quanto numa colônia de bactérias. Exige, por parte de um sistema, um fazer e refazer, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio, conservando sua adaptação ao meio em que existe, desde que, ao conservar sua adaptação ao meio, conserve também sua organização interna (do contrário não poderia continuar mantendo a mesma identidade e, nesse caso, não poderíamos falar propriamente do mesmo ‘ser’ ao nos referirmos a ‘ser sustentável’).

Mas ser sustentável significa também ser capaz de mudar o próprio programa de adaptação, quando a situação o exige. Ora, somente o que tem a morfologia (e a dinâmica) de rede – como, por exemplo, a estrutura neural distribuída do cérebro humano – consegue fazer isso. Assim podemos afirmar que só podem ser sustentáveis sistemas complexos adaptativos que têm a estrutura de rede. Se o cérebro humano fosse organizado segundo os padrões hierárquicos de um órgão estatal, de uma empresa ou de uma organização da sociedade civil, não poderíamos continuar existindo (ou melhor, não poderíamos nem ter surgido). Se um ecossistema fosse organizado como um exército, e a resposta a um incêndio ou a um alagamento dependesse da avaliação de um estado-maior e tivesse de aguardar as ordens transmitidas hierarquicamente dos generais para os coronéis, para os majores, para os capitães, para os tenentes e para os sargentos e cabos até poderem ser implementadas pelos soldados, não existiria biosfera no planeta Terra.

De modo geral podemos dizer que só é sustentável o que se desenvolve continuamente, segundo um ponto de vista sistêmico. Entretanto, tal como ocorre com o conceito de desenvolvimento, a sustentabilidade que nos interessa envolve as sociedades humanas. Que Gaia (o “planeta-vivo”) seja sustentável, não se discute (se aceitarmos a hipótese Lovelock-Margulis). O problema para nós, seres humanos, é se continuaremos existindo como tais, não apenas como indivíduos (ou como espécie biológica), mas como sociedade.

Nossas sociedades (e as organizações que dela fazem parte) são sustentáveis? Se não são, o que devemos fazer para que sejam? Essa é a grande questão da sustentabilidade, tal como está colocada neste início do terceiro milênio.

Algumas idéias seminais, surgidas nas últimas décadas, nos ajudam a entender os fundamentos do conceito de sustentabilidade. Essas idéias são:

1) a autopoiese;

2) o conjunto interdependência-reciclagem-parceria-flexibilidade-diversidade; e,

3) o desenvolvimento como rede de co-desenvolvimentos interdependentes.

Temos aqui um bom caminho de investigação.

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