quinta-feira, 15 de maio de 2008

AUTOPOIESE

No post anterior, “Sobre o conceito de sustentabilidade”, conclui afirmando que algumas idéias seminais, surgidas nas últimas décadas, nos ajudam a entender os fundamentos do conceito de sustentabilidade. Essas idéias são: 1) a autopoiese; 2) o conjunto interdependência-reciclagem-parceria-flexibilidade-diversidade; e, 3) o desenvolvimento como rede de co-desenvolvimentos interdependentes. Temos aqui um bom caminho de investigação.

Uma dessas idéias principais é a de autopoiese (autocriação) que foi formulada pelo biólogo chileno Humberto Maturana e seu aluno Francisco Varela em 1973. Um resumo dessa idéia, feito pelo próprio Maturana, em 1985, no texto “Desde la biologia a la psicologia”, é o seguinte:

"Os seres vivos, como sistemas determinados estruturalmente, são sistemas que, em sua dinâmica estrutural, constituem-se e delimitam-se como redes fechadas de produção de seus componentes a partir de seus próprios componentes e de substâncias que tomam do meio: os seres vivos são verdadeiros redemoinhos de produção de componentes, em virtude de que as substâncias que tomam do meio, ou vertem no meio, seguem participando transitoriamente do ininterrupto intercâmbio de componentes que determina seu contínuo revolver produtivo. É esta condição de contínua produção de si mesmos, por meio da contínua produção e intercâmbio de seus componentes, o que caracteriza os seres vivos e é isto o que se perde no fenômeno da morte".

As idéias de Maturana sobre esse processo de autopoiese (autocriação) que caracteriza os seres vivos (organismos, partes de organismos, ecossistemas e, talvez, Gaia), podem ajudar a compreensão da sustentabilidade na medida em que qualquer sistema constituído como unidade, como uma rede de produção de componentes que, em suas interações, geram a mesma rede que os produz e constituem seus limites como parte do próprio sistema no seu espaço de existência, é um sistema autopoiético. Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares e existem como tais no espaço molecular. Mas em princípio pode haver sistemas autopoiéticos em qualquer espaço no qual possa se realizar a organização autopoiética.

No mesmo texto Maturana sustenta que:

"Nos sistemas em contínua mudança estrutural, como os seres vivos, a mudança estrutural se dá tanto como resultado de sua dinâmica interna, como desencadeado por suas interações com um meio que também está em contínua mudança. A conseqüência disso é que, a partir da estrutura inicial do ser vivo, ao começar sua existência, o meio já aparece selecionando nele, ao desencadear mudanças determinadas em sua estrutura, as conseqüências de mudanças estruturais que ocorrem ao longo de seu viver, em uma história de sobrevida que necessariamente ocorre na congruência do ser vivo e do meio, até que o ser vivo morra porque esta congruência se perde".

Daí podemos inferir (como ele próprio, Maturana, infere) que a estrutura de cada ser vivo é, em cada instante, o resultado do caminho de mudança estrutural que seguiu a partir de sua estrutura inicial, como conseqüência de suas interações no meio em que lhe coube viver. E que o que chamamos de vida é um exemplo de sustentabilidade, ou seja, é a capacidade de fazer e refazer, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio.

Maturana assinala ainda que:

"Os seres vivos existem sempre imersos em um meio com o qual interagem. Além disso, como o viver de um ser vivo transcorre em contínuas mudanças estruturais – como resultado de sua própria dinâmica interna ou desencadeadas pelas suas interações com o meio – um ser vivo conserva sua organização em um meio somente se sua estrutura e a estrutura do meio são congruentes e se esta congruência se conserva. Se não se conserva a congruência estrutural entre ser vivo e meio, as interações com o meio desencadeiam no ser vivo mudanças estruturais que o desintegram e ele morre”.

Fazendo um paralelo com outros sistemas sustentáveis, poderíamos afirmar que, considerando que essa congruência estrutural entre ser vivo e meio (seja qual for este meio) chama-se adaptação, uma organização continua existindo como tal (como um sistema) somente enquanto conserva a sua adaptação. E que todo sistema existe somente na conservação de sua adaptação e de sua organização e somente em circunstâncias nas quais a conservação de uma envolva a conservação da outra. Por último, podemos dizer que a estrutura presente de uma organização (sistema) é sempre o resultado de uma história na qual suas mudanças estruturais foram congruentes com as mudanças estruturais do meio.

3 comentários:

Carmona disse...

Bate e assopra...

Bate: Quero enfatizar a minha admiração pela brilhante construção do artigo sobre autopoiese, que tem uma sequencia lógica admirável. Mas permito-me constestar o uso da autopoisese em alguns pontos, respaldado por um salutar debate de que participei com o próprio Maturana e Ximema Dávila: a autopoiese é aplicável somente aos seres vivos, e sua extensão a sistemas como empresas, biosfera e, por que não, Gaia, é incorreta. Argumento do próprio Maturana (como o escutei): a autopoiese é a realização de todos os componentes de um "ser vivo" para permanentemente reconstruir os seus componentes, que assim contribuirão com a manutenção da reconstrução, mantendo congruência e estrutura do ser vivo. Ponto fundamental: os componentes do ser vivo não tem escolha, são "obrigados" a ter um comportamento biológico para manter a autopoiese e a vida. Sendo assim, "seres sociais", não sendo seres vivos, não podem ter aplicado o conceito na sua essência, pois seus integrantes (pessoas, animais, seres inteligentes em geral) tem escolha, não são orientados a um só destino, o de manter a autopoiese. Nas palavras de Maturana, "se o conceito de autopoiese for aplicado às empresas, sociedade... eu não teria o direito de fazer escolhas, não seria livre, então, estou fora...".

Assopra: Mas o que Augusto argumenta não perde com isso, apenas fica mais profundo e aumenta nossa responsabilidade com a Sustentabilidade: ela existe ou deixa de existir por NOSSA escolha, as pessoas não são obrigadas autopoieticamente a manter a nossa sociedade viva, nosso mundo vivo. Sendo assim, ela poderá deixar de existir se não trabalharmos para que todos tenham a consciência de que, deixada sozinha, talvez "Gaia" sobrevivesse, mas nós temos o poder de trabalhar livres e essa liberdade precisa ser dirigida para o bem e a Sustentabilidade, e não o contrário.

AF disse...

Prezado Carmona,
não afirmei que a autopoiese se aplica a sistemas não-vivos. Conheço bem as idéias de Maturana. Apenas afirmei que a idéia de autopoiese nos ajuda a compreender a idéia de sustentabilidade.

Carmona disse...

Prezado Augusto,
estou certo de que seu conhecimento de Maturana, como em muitos outros, é profundo. Atrevi-me a iniciar esse diálogo e, convenhamos, nos seus textos achar algo a debater não é trivial.:-)

O ponto que levantei é: desejamos a liberdade em nossa sociedade, aceitando o que ela que pode ou não trazer como consequência para a Sustentabilidade?

Se a resposta é sim, na análise dos sistemas em que a sustentabilidade pode ser afetada pela liberdade de escolha de cada componente não deve a autopoiese apoiar como conceito ou comparativo pois a liberdade não existe em um sistema autopoiético. No entanto, parece-me adequado entender que um sistema autopoiético é sustentável - mas não livre -, e que devemos buscar sustentabilidade com liberdade.

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