sexta-feira, 16 de maio de 2008

PRECISAMOS DE UM NOVO CONCEITO DE RESPONSABILIDADE SOCIAL

No post anterior comentamos o quarto e último desafio da sustentabilidade colocado para as empresas atuais: o exercício da responsabilidade social e política.

No entanto a questão da responsabilidade corporativa - chamada freqüentemente de responsabilidade social - ainda vem sendo bastante maltratada. Do ponto de vista das novas exigências da sustentabilidade, precisamos, ao que tudo indica, de um novo conceito de responsabilidade social. De uma nova maneira de realizar o chamado investimento social privado. De uma nova forma de exercer a responsabilidade corporativa.

Para começar, é necessário ver que responsabilidade social não é apenas corporativa. Não é uma coisa para ser feita somente por empresas. Todos os cidadãos e as organizações de todos os setores (empresas, governos, sociedade civil ou terceiro setor), estão chamados a exercer a sua responsabilidade social no mundo contemporâneo.

Em segundo lugar, é necessário ver que responsabilidade social não é apenas influir ou agir na chamada “área social” (não é somente implementar ou financiar programas ou ações de assistência social, de educação, de saúde, de saneamento, de alimentação e nutrição ou, mesmo, de criação de postos de trabalho ou de geração de renda).

Responsabilidade social é responsabilidade com o desenvolvimento de uma sociedade em termos mais globais ou sistêmicos. Chama-se responsabilidade social porque se aplica a sociedades e não porque atue setorialmente naquilo que se convencionou chamar de “área social”. Envolve, assim, todos as dimensões do desenvolvimento: sociais, econômicas, culturais, físico-territoriais e ambientais, político-institucionais e científico-tecnológicas. E é um investimento em todos os fatores do desenvolvimento: sociais, humanos, econômicos e naturais.

Uma nova concepção do desenvolvimento está surgindo nas últimas décadas, baseada na visão sistêmica dos processos sociais e nas múltiplas relações intersetoriais que configuram um padrão complexo de interdependências entre o Estado, o mercado e a sociedade civil. Segundo tal concepção, desenvolvimento agora envolve capacidade de inovação, de fazer parcerias, de criar ambientes favoráveis à sinergia e de aproveitar as inusitadas potencialidades da simbiose. Esses são os novos conceitos-chave da mudança da velha idéia de crescimento para uma nova concepção de desenvolvimento.

Vamos nos concentrar, entretanto, na responsabilidade corporativa, na chamada responsabilidade social das empresas. Por que é necessário que as empresas pratiquem responsabilidade social se já pagam tantos impostos, criam empregos, disponibilizam produtos e serviços e dinamizam a economia gerando crescimento e contribuindo para a prosperidade econômica de uma sociedade?

É preciso fazer alguma coisa, além disso? O quê? Por quê? Como? E o que tudo isso tem a ver com a tão almejada sustentabilidade?

Para responder essas questões é bom ver como vem evoluindo a noção de responsabilidade social no meio empresarial.

A evolução da idéia de responsabilidade social no meio empresarial

É crença corrente que a idéia de responsabilidade social surgiu inicialmente como um apelo de natureza ética, dirigido ao mundo empresarial. Seria uma maneira de os empresários devolverem à sociedade onde vivem, na forma de investimento social privado (em saúde, educação, assistência a crianças, idosos, pessoas em situação de risco e portadoras de necessidades especiais etc.), uma parte dos lucros que conseguiram realizar em seus negócios.

Houve – e ainda há – resistências a essa idéia. Muitos argumentaram que os empresários não têm nenhuma obrigação de devolver nada à sociedade além dos altos impostos que já pagam, dos empregos que geram, dos bens e serviços que produzem e da dinamização da economia que sua atividade desencadeia.

Outros – sem refugar a idéia – salientaram que a principal obrigação dos empresários é remunerar bem o trabalho dos seus colaboradores e o capital dos seus sócios ou acionistas.

Foi preciso mais de uma década de discussões e iniciativas, para que algumas pessoas começassem a descobrir que praticar a responsabilidade social corporativa seria uma boa maneira de a empresa fortalecer os seus laços com a sociedade e ao mesmo tempo direcioná-los para o desenvolvimento por meio de uma adequada gestão da sua rede de stakeholders (termo cunhado por Edward Freeman, em 1984, no artigo “Strategic Management: a stakeholder aproach”, para designar qualquer pessoa que seja afetada, ou possa ser afetada, pelo desempenho de uma organização): seus proprietários, acionistas e dirigentes, seus funcionários, seus fornecedores, outras empresas e organizações coligadas ou parceiras, o público alvo de suas ações de responsabilidade social, seus clientes e consumidores de modo geral e as populações afetadas pela sua atuação.

O fato é que, por uma ou outra razão, o movimento de responsabilidade social tem crescido no meio empresarial.

Em primeiro lugar, talvez, pela aceitação do chamamento ético à responsabilidade. Muitos empresários, por uma questão de postura pessoal, acolheram tal apelo.

Em segundo lugar, em virtude do surgimento e da expansão de novas formas de convivência e de sociabilidade que estão estimulando o trabalho voluntário, a doação de tempo e recursos para questões sociais e ambientais. Alguns empresários passaram a admirar essas novas práticas, baseadas em valores como cooperação e solidariedade, que começaram a ocorrer, inclusive, dentro de suas empresas ou a serem exercidas por seus empregados em outros ambientes. De certo modo, foram contagiados por elas e passaram, então, a considerar seriamente a possibilidade de se engajar em ações semelhantes, tanto individualmente, quanto coletivamente, destinando uma parte dos recursos auferidos com seus negócios para investimentos em causas sociais.

Em terceiro lugar em razão da emergência de uma nova visão das relações entre o mercado e a sociedade – compartilhada hoje por muitos donos de empresas, acionistas e CEOs –, segundo a qual é altamente desejável manter sintonia com as inovações sociais contemporâneas. Uma empresa moderna, sintonizada com a contemporaneidade, não pode sê-lo apenas nos seus negócios, nos seus produtos ou serviços e nos seus processos de produção e de gestão. Deve, além disso, manter uma relação com os seus funcionários e com o ambiente externo sintonizada com as inovações. Isso, por certo, tem a ver com a imagem da empresa, mas também tem a ver com a sua missão, o seu propósito, a sua razão de ser. Portanto, isso tem a ver com a capacidade da empresa de mobilizar capital humano e capital social, interno e externo.

Alguns empreendedores empresariais aderiram à idéia e à prática da responsabilidade social porque querem ser modernos, querem estar na vanguarda, querem participar das inovações e, sobretudo, não querem ficar fora da nova onda e ser considerados ultrapassados.

Ocorre que muitas empresas – talvez a maioria – resolveram responder ao apelo da responsabilidade social com o chamado marketing social. Assim, passaram a exercer o seu investimento social privado também (ou principalmente) como um negócio. Viram que era bom para os negócios que a empresa aparecesse como uma empresa responsável socialmente. Ou viram, pelo menos, que o contrário não era muito bom para os negócios: empresas que não estão comprometidas – ou que não aparecem publicamente como comprometidas – com a qualidade de vida do meio social em que se inserem, dos seus stakeholders, sobretudo de seus clientes ou dos destinatários finais de seus produtos ou serviços, começaram a ficar mais vulneráveis a questionamentos dos consumidores e da opinião pública em geral, tal como já acontece, há mais tempo, com empresas não comprometidas com a conservação do meio ambiente natural.

De qualquer modo, há quem sustente, baseando-se em fortes evidências, que a adesão crescente do empresariado ao conceito e à prática da responsabilidade social, deve-se à consciência de que não fazer isso pode acabar afetando negativamente os resultados econômicos da empresa.

O fato de muitos empresários terem aderido à responsabilidade social por razões de marketing talvez não chegue a ser um grande problema. É claro que se pode dizer que, ao proceder assim, estamos deixando transbordar a lógica do mercado para a sociedade. Ou que, ao conceberem e praticarem dessa forma a responsabilidade social, muitas empresas estão perdendo preciosas oportunidade de se desenvolver e de contribuir para o desenvolvimento da sociedade a que pertencem. Mas deve-se compreender que as razões de marketing constituem a racionalidade e a “lógica” de funcionamento do mercado e não há como delas se desvencilhar quando se vem do mercado. Em outras palavras, não é de estranhar que, pelo menos inicialmente, os empresários tenham enviado o assunto para os departamentos de marketing de suas empresas. Todo o problema aqui está em saber se, conduzido como propaganda, o exercício da responsabilidade corporativa pode cumprir aquele papel imprescindível e insubstituível que cabe à participação empresarial, para o desenvolvimento da sociedade e das próprias empresas.

Sobre isso ainda há muita discussão inconclusa. Alguns acham que a participação empresarial constitui, nas sociedades contemporâneas, um aporte necessário, imprescindível e insubstituível, porque os Estados estão falidos e os recursos necessários para promover o desenvolvimento social estão nas empresas. O exercício da responsabilidade corporativa teria, assim, um caráter supletivo e se justificaria pela ausência da ação estatal verificada nos dias de hoje. Existem empresas, por exemplo, que se dedicaram a asfaltar ruas e a fazer obras de saneamento básico. Todavia, a maior parte dos atores empresariais, felizmente, já compreendeu que, se o seu aporte às ações que são próprias de governos está sendo considerado como necessário, isso se deve ao fato de que o mundo empresarial desenvolveu padrões de excelência em gestão e em estratégia para a obtenção de resultados em sistemas complexos (como são os mercados atuais) que podem se somar àqueles desenvolvidos pela moderna gestão pública.

Boa parte do empresariado já compreendeu que não é porque o Estado esteja, supostamente, se retraindo ou sendo pouco eficaz, pouco eficiente ou pouco efetivo, que as empresas devem ser chamadas a vir “tapar o buraco”. E uma parcela crescente já sabe que uma empresa jamais poderá (e deverá) substituir o Estado ou compensar a sua falta. Não porque a empresa, pelo fato de ser uma organização privada, não possa prover bens e serviços públicos (o que seria tão óbvio quanto errado) e sim a partir da compreensão de que empresas e Estado são tipos diferentes de agenciamento, têm “lógicas” diversas e suas ações são presididas por racionalidades distintas. Já se viu que o conhecimento acumulado por uma empresa, seu processo de aprendizado, sua experiência, sua visão da sociedade e seu modo de intervir, não são os mesmos do Estado (e dos governos). Essa talvez seja a principal razão pela qual, salvo raras exceções, bons empresários não costumam se transformar em bons administradores públicos.

Mesmo assim, algumas empresas ainda ficam tentadas a replicar o padrão de relação do Estado com a sociedade, caindo nos vícios desse tipo de relação (como o assistencialismo, o clientelismo e a centralização, por exemplo). Hoje já é bem mais raro, mas ainda se pode encontrar empresas doando cadeiras de rodas, distribuindo sopa para os pobres (às vezes até industrializadas, enlatadas) ou cestas de Natal nas periferias das cidades.

Se bem que a maioria dos empresários já não encare mais o investimento social da empresa como a simples aceitação de um apelo ético (em virtude do “bom coração” ou da “consciência culpada” de seus donos) e que uma parte significativa do setor empresarial já saiba que esse investimento tem razões que vão além da visão instrumental, orientada pelo marketing, de que isso “é bom para os negócios”, ainda são muito poucos os que compreendem que o investimento social da empresa tem a ver com o desenvolvimento da empresa como um todo, com a sua sustentabilidade; ou seja, com as condições estruturais para que a empresa possa ser capaz de conservar a sua adaptação a um mundo em acelerada mutação.

A responsabilidade corporativa ainda é definida de modo instrumental: seja pelos que a compreendem como capacidade da empresa de criar valor nas suas redes de relações; seja pelos que a encaram como gestão preventiva de impactos econômicos, ambientais, sociais e políticos (uma visão meio defensiva e, além disso, incompleta; melhor seria dizer: gestão proativa dos recursos e dos impactos econômicos, ambientais, sociais e políticos); seja, por último, pelos que a defendem como uma expressão da sintonia da empresa com o desenvolvimento sustentável por meio do compromisso com uma agenda nacional, com uma agenda local (realizando investimentos sociais privados em prol do desenvolvimento na localidade onde a empresa está sediada ou de alguma outra localidade ou setor adotados por ela) e com uma agenda de engajamento dos diversos públicos internos da empresa (por meio do estímulo às doações individuais de recursos dos seus colaboradores e da promoção do voluntariado corporativo).

Independentemente dessas diversas conceituações de responsabilidade social, tudo ainda é feito para que a empresa continue existindo com a mesma cabeça e com o mesmo corpo (e, sobretudo, com as mesmas relações entre sua cabeça e seu corpo). A responsabilidade social é mais um instrumento para que ela – a empresa - não perca terreno em relação aos seus concorrentes, sem ter que mexer muito nos seus padrões de organização e funcionamento. Se não fosse assim, os encarregados do assunto dentro das empresas deveriam participar do seu núcleo estratégico decisório (o que é raro: quando não está no marketing – o que já é um avanço – esse pessoal é alocado em algum departamento lateral, como mais um braço da empresa).

Tudo isso revela – na prática, para além dos discursos construídos, decorados e proferidos “para inglês ver” – uma incompreensão do fato de que uma empresa só pode ser sustentável se for capaz de exercitar sua responsabilidade corporativa. Ora, já existem pelo menos três razões para sustentarmos isso. A primeira razão é que a sustentabilidade de uma empresa tem a ver com as relações entre a sua atuação e o ambiente externo à empresa (o mundo, o país, a localidade onde está situada) e, assim, a empresa deve assumir na prática a responsabilidade pelos impactos (econômicos, sociais, ambientais e políticos) que a sua atuação produzirá nesse ambiente externo. A segunda razão, mais forte, é que a sustentabilidade de uma empresa tem a ver com as relações entre o ambiente interno e o ambiente externo à empresa (e ela deve conseguir manter uma congruência dinâmica entre esses dois ambientes, assumindo e exercendo a responsabilidade por monitorar essa relação e modificar continuamente a sua estrutura e a sua dinâmica para manter tal congruência). Por último, a terceira razão, mais forte ainda, é que não é a empresa isoladamente que pode ser sustentável e sim a sua rede de relações, da qual participam seus diversos públicos, internos e externos e, assim, a empresa deve assumir a responsabilidade por tecer e animar essa rede de modo a permitir a emergência de processos sistêmicos de coordenação capazes de ensejar a conservação da sua adaptação e da sua organização.

Em suma, a compreensão que falta, para que avancemos para um conceito contemporâneo de responsabilidade social sintonizado com as novas exigências da sustentabilidade, é a de que o que chamamos de sustentabilidade da empresa (ou da sua rede de relações) ocorre somente enquanto a empresa se desenvolve.

Isso exige uma nova compreensão do desenvolvimento. Embora o conceito de desenvolvimento evoque a idéia de movimento (de formação, crescimento e mudança – que são movimentos) em direção à sustentabilidade, não se compreendeu ainda que pode haver movimento sem haver desenvolvimento. Por exemplo, o simples crescimento de tamanho (no caso de uma empresa: de faturamento, de número de funcionários, de número de filiais) é um movimento, mas não é, por si só e necessariamente, desenvolvimento. Uma empresa pode crescer, crescer, crescer e... desaparecer (como naquela anedota do doente que “morreu, mas morreu bem melhor”). Por isso que desenvolvimento é algo mais do que crescimento. E no caso de sistemas formados por seres humanos, desenvolvimento só é desenvolvimento mesmo se for humano, social e sustentável. Essa é uma nova concepção de desenvolvimento, que vale para qualquer coletividade humana estável, seja uma sociedade, seja uma organização (como uma empresa).

E ela pode contribuir para colocar no lugar a noção, ainda tão maltratada nos meios empresariais, de responsabilidade social.

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